Meditação para além da técnica – I: Maravilhamento

A meditação como uma técnica para se alcançar algo, ainda é amplamente divulgada por professores e escolas. Quando investigamos a tradição da meditação em seu fundamento e nos desafiamos a entrar na prática com o coração aberto, podemos reconhecer que os conceitos não são nada além do dedo que aponta para a transcendência da própria técnica, sendo nossa tarefa nos lançarmos para além do universo de caminhos conhecidos.

meditacaoA poesia pode ser uma mestra da arte do maravilhamento, experiência esta que nos desponta para um horizonte de beleza em nós não antes imaginado, indizível… que nos convida cada vez mais ao aprendizado do olhar…


Quando olho atentamente
Vejo florir a nazuna
Ao pé da sebe!
(Basho 1644-94)

A mudança daquele que radicalmente abre os olhos para o mundo é a revolução de um todo. O olhar atentamente, como quem espera por uma surpresa que não se pode adivinhar e é tomado por um sentimento de maravilhamento, pode ser ocasião para se perceber um movimento de vida, o florescer, uma abertura, ainda que sutil…

Nossa atenção pousada sobre algo faz instantaneamente este algo se mostrar cada vez mais a nós. Tomemos uma flor ou mesmo nosso próprio coração. Podemos sentir no peito um leve movimento que nem percebíamos antes da atenção. Ao ter como foco o coração, deixando todo o resto apenas passar como um fundo, sentimos cada vez mais o pulsar, ele se mostra e se complexifica para nossa percepção. Nada mudou, mas para aquele que observa, o mundo interno se expande e muita novidade nasce desta simples meditação.

Há a possibilidade de observar a força impetuosa com que o coração trabalha e sentir o fluxo de sangue que nos percorre e, assim, contemplar nosso corpo unido como um todo a cada batida. Podemos levar alguns dias, várias horas de diligência e muitas retomadas neste ponto de atenção quieta, mas tal sensibilidade é acessível. Podemos ainda ir além, pois em cada detalhe se encontra a possibilidade de contemplar o ímpeto da vida, até na mais pequena flor silvestre.

O poeta Basho do Haiku acima, a partir de seu silêncio, sabe discernir a grandeza que reside até nas menores pétalas e compartilha tal abundância sem o uso de superlativos. Prefere narrar uma experiência própria e deixar o ponto de exclamação reverberar para além da palavra.

moçoEste olhar atento nos remete a uma quietude necessária para deixar que algo seja. Podemos assim permitir que a vida se mostre antes de reduzirmos o fenômeno a uma explicação, categoria, palavra etc. Nada se esgota em definições, há sempre algo mais ali. Por isso, o silêncio e a quietude são tão caros para quem busca aprofundar-se.

O poema de Basho não sugere alguma explicação, mas aponta algo, uma experiência autêntica humana de contemplação é expressa. Fazemos uma reverência ao mistério a cada vez que nos abrimos ao silêncio, que pode ser mais estridente do que palavras. A partir de outro posicionamento nasce o seguinte poema de Tennyson:

Flor no muro fendilhado
Eu te arranco das fendas;
Seguro-te aqui, com raiz e tudo, em minha mão,
Florzinha – mas se pudesse compreender
O que és, com raiz e tudo, e tudo em tudo
Eu conheceria o que são Deus e o homem
(Tennyson, 1809-92)

O escritor busca por sentido e faz um apelo à compreensão, tenta agarrar o sentido e neste movimento arranca a flor da terra a que faz parte. Isso pode evocar em nossa mente alguns métodos de conhecimento que dissecam o objeto de estudo em partes para entender o todo da suposta mecânica das coisas, apartada do observador. Tennyson não xul solarse limita a contemplar a flor, mas analisa e busca explicar. Por fim revela uma postura impotente diante do mistério intuído. Aqui percebemos mais intelectualização do que experiência viva e radical de abertura. O posicionamento do olhar é essencial para colher a vida que se mostra. “Tudo tem sua beleza, mas nem todo mundo a vê”, (Confúcio).

O poeta Basho não formula perguntas logo de sobressalto, ele prioriza o observar atentamente o próprio mistério intuído que evoca algo original da flor, a própria vida em abundância até no pé da sebe, e então ele exclama no silêncio (!). O poeta radicalmente vê a flor e neste encontro vê também a si mesmo. Não se trata só de perceber um objeto, mas de se dar conta de si próprio, compreender o eu sou.

Há uma “comunicação” entre o observador e a flor, pois a flor também se refere a mim. “Se sou consciente do objeto, mas também de meu próprio processo, então não está em ato somente o meu eu, mas também um nível em que o eu se dá conta de que está percebendo, se dá conta de si mesmo.” (Mahfoud, 2007). “Posso ter também a percepção de que, enquanto disponho de um fluxo de vivências, eu sou.” (Stein, 1994). Esta atenção que se volta para dentro, para esse núcleo pessoal, é possível através da vivência e não conceitualmente. Podemos dizer que o olhar atento revela algo para além de um objeto e seu significado, mas volta ao original em nós através de uma vivência consciencial (Stein, 2005 in Mahfoud, 2007).

“A fonte desse conhecimento não é exatamente um processo reflexivo. Pelo contrário: uma luz é jogada sobre nosso processo reflexivo, sobre esse fluxo de consciência em que posso me dar conta de estar vivenciando. Note-se que não se trata de perceber o que está ocorrendo, mas também compreender que eu sou. Não apenas que sou de um jeito ou de outro, mas que eu sou.”  (Mahfoud, 2007)

meninoA consciência tem uma característica de abertura em sua natureza, pois o objeto me convida a dar conta dele (abertura para fora) e a dar conta de mim, que observa (abertura para dentro). O mundo é um convite a se dar conta.

Giussani aponta a importância de observarmos a ação e não somente o conceito. A ação seria uma tomada de posição nossa que pode ser ocasião para então captarmos o movimento que dá iniciativa ao ato. A questão não se esgota na ação, há a fonte desse movimento, algo que não é objetivável, mas reconhecível. A partir desse reconhecimento, pode haver unidade na pessoa (microcosmo) e com a vida em constante fluxo (macrocosmo). Podemos esvaziar a experiência humana se não levamos em consideração o fundamento, que é a consciência do ser e a abertura à presença.

Como exemplo podemos voltar ao poema de Tennyson. Nele percebemos um narrador que evoca uma identidade cristalizada e desarticulada, que gera uma artificialidade contrária à experiência. O narrador parece se sentir separado da flor e do mistério intuído.

De acordo com Nisargadatta, não há um ser fechado em seus significados e depois o mundo chega secundariamente, a consciência sempre é consciência de um objeto, ou seja, o olhar lança sentido para o mundo e, portanto, nunca se separa dele, minha consciência está sempre em uma interação intrínseca com o que se apresenta. Com isso percebe-se que não há consciência e um objeto em si, mas o conhecedor surge com o objeto conhecido e vice-versa. “O conhecedor surge e desaparece com o conhecido” (Nisargadatta).

Ao darmos um passo atrás e observarmos a união que é o perceber, a co-criação do fenômeno em ato, podemos ver que não estamos tão separados da flor. Um olhar enuncia o encontro entre duas coisas, mas que nunca estão separadas entre si.

Por Débora Nogueira

Acompanhe pelo Blog nossa sequência de posts “Meditação para além da técnica”

Namastê!


Bibliografia:

D.T. Suzuki, Erich Fromm, Richard de Martino – Zen Budismo e Psicanálise – Tradução de Octavio Mendes Cajado. Editora Cultrix, 1960

GIUSSANI, Luigi. Indo ao Encontro Humano. In Um avvenimento di vita cioè uma storia: itimerario di quindici anni concepiti e vissuti (pp. 220-235). Roma: II Sabato. N. 21, 1988.

MAHFOUD, M. Experiência elementar em psicologia: aprendendo a reconhecer. Brasília: Universa; Belo Horizonte: Artesã, 2012.

MAHFOUD, M. Centro pessoal e núcleo comunitário, segundo Edith Stein: indicações para estudos sobre família. In: MOREIRA, L.; CARVALHO, A. M. A. (Org.). Família, subjetividade, vínculos. São Paulo: Paulinas, 2007, pp. 107-124.

NISARGADATTA, M. S. I Am That: Talks with Sri Nisargadatta Maharaj, 1988

PARREIRA, Walter. Fenomenologia e espiritualidade: consciência e meditação. Memorandum (Belo Horizonte), v. 27, pp.61-72, 2014. Disponível em:
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a27/parreira01/

PRADO, Adélia. Arte como experiência religiosa. In: MASSIMI, M.; MAHFOUD, M. (Org.). Diante do Mistério: psicologia e senso religioso. 1 ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999, pp. 17-32.

WATTS, Alan. Tabu – O que não o deixa saber quem você é? Tradução de Fernando de Castro Ferreira e Olavo de Carvalho. Coleção Planeta n 53. São Paulo: Editora Três, 1973.

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